p/ Jô.
Sempre há algo que antecede qualquer ponto de partida de uma
história a ser contada. Esta história, por exemplo, poderia começar muito antes. Mas,
na condição de narradora, escolho começá-la numa pastagem muito verde, onde novilhos
carnudos alimentam-se de brotos tenros de grama. Fazem parte de um grupo de animais que o
fazendeiro proprietário de tudo por ali chama de gado para corte.
Não demora para que alguns caminhões estacionem junto ao curral, onde os boizinhos
se apinham, pressionados pelo pouco espaço. Dali, são engaiolados nas
carrocerias, e seguem por estradas, mal acomodados, amedrontados pelo que os
espera, embora não saibam exatamente o que seja.
Mortos no frigorífico, seus corpos transformados em produtos, mercadorias, ganham destinos diversos. De um lado, a carne tenra é destinada aos processamentos para produtos de alimentação. De outro lado, sua
pele é encaminhada para beneficiamento. O couro devidamente tratado é destinado
à indústria de calçados, chapéus, bolsas, roupas, dentre tantos outros objetos e mercadorias.
Um dos novilhos carnudos da pastagem verde teve seu couro
retirado, tratado, e encaminhado para a indústria de calçados, mais
especificamente de botinas, em sua maioria usadas por pessoas que trabalham no
campo, na agricultura ou criação de animais, ou que transitam entre o campo e a
cidade. Pois bem, o couro daquele novilho foi transformado numa botina de
número 39, com solado de borracha, e elástico nas laterais, para facilitar no
processo de calçar. Cor preta. Confeccionada por máquinas, mãos operárias as
colocaram numa caixa de papelão na qual se podiam ler suas especificações. Seguiu,
com muitas outas caixas, para ser acomodada em prateleiras de uma loja
especializada em calçados, de onde foi comprada por um fazendeiro, desses que
moram na cidade e trabalham no campo, e vão e vêm em camionetes atrevidas
singrando estradas nem sempre bem conservadas. A botina era confortável, caiu-lhe
bem nos pés. Começou a usar, e já quase não descalçava.
Depois de muitos meses de uso, a botina, que um dia foi pele
de um novilho carnudo, já mostrava desgaste, o que até lhe dava um certo
charme. A sola, meio entortada, as bordas do couro meio desbeiçadas. O elástico
já frouxo. E, na ponta de um dos dedões, um furo mal aberto já começava a se
esgarçar.
A um amigo artesão especializado em objetos de couro, encomendou
um par de botas feitas à mão. Estava com as botinas, quando foi experimentar as
botas novas. Estas afeiçoaram-se aos seus pés de tal modo que, uma vez
calçadas, não mais quis tirá-las. Foi-se embora, deixando as botinas velhas
para trás: tortas, feias, desgastadas.
A esposa do artesão as olhou, e vislumbrou nelas um par de
vasos para umas mudas de orelha-de-elefante. A mudinha gostou do pé de botina
furado no dedão. Aconchegou-se em suas curvas. Suas raízes espalharam-se no
espaço com terra, antes ocupado pelo pé do agricultor. E as folhas foram
estendendo-se, timidamente, para cima, experimentando a morada.
No último domingo à noite, fomos visitar o artesão e sua
esposa. Voltei para casa alegre, nutrida de afetos, abraçada à botina com a
muda da orelha-de-elefante. A botina, que um dia já foi novilho, repousa sobre
a mesa da varanda. Agora é morada de uma plantinha que vai se pondo valente, à
vista das demais plantas habitantes desse espaço.
Olho para elas, a botina e a plantinha, e penso em todas
essas metamorfoses, esses caminhos, e todos os outros que sequer consigo
imaginar...
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo...
(Raul Seixas)
Um deleite visual! Grato.☺️
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