Para Rutinha, meu amor
Logo que minha mãe faleceu, há pouco mais de um ano, eram frequentes os episódios quando eu sentia cheiro de flores. Então eu perguntava a quem estivesse por perto se também sentia o perfume. Só eu sentia.
Fala-se que quando sentimos perfume de flores, sem que haja
flores por perto, sua origem está na presença de anjos ou de boas almas a nos
protegerem. Quando comentava o perfume que sentia, em geral as pessoas
atribuíam à possível presença da minha mãe, a nos proteger. Era um alento para
a falta que ela fazia. Eu acolhia a explicação com muito afeto, embora pairasse
sempre alguma dúvida sobre a efetiva origem da sensação.
Aos poucos, os episódios com o perfume de flores foram
ficando espaçados entre si, até que não me lembro quando teria ocorrido pela
última vez. Parei de sentir o perfume de flores. E parei de sentir os demais
odores: perdi o olfato. Demorei um pouco para me dar conta do que ocorrera.
Eu sempre tive o olfato muito aguçado. Preparando o almoço,
por exemplo, eu me orientava muito mais pelo olfato para perceber o ponto de
cozimento dos alimentos, do pelo tempo, ou pelo olhar. Eu sabia quando o arroz
já estava pronto pelo cheiro. Nem olhava para decidir desligar o fogo a panela
ou não.
Experimento agora uma sensação estranha. É como se o mundo à
volta tenha ficado silencioso do ponto de vista dos odores.
Provavelmente
não fosse a presença mágica de minha mãe à minha volta que tenha provocado a distorção da
percepção olfativa, fazendo-me sentir perfume de flores. Suspiro aliviada. Se era
uma distorção do olfato, agradeço ao organismo por ter trazido perfume de
flores e não cheiros desagradáveis de material orgânico em decomposição.
Penso nas tantas sequelas deixadas pela pandemia provocada pela COVID, sequelas de ordem social, coletiva, de ordem individual, tanto comportamental quanto orgânica, somática. Embora eu tenha tomado todas as vacinas, tive dois episódios leves da virose. Uma das possibilidades é que a perda do olfato seja uma das sequelas da doença. Anosmia é o nome da perda total do olfato, com consequências também no paladar. Fantosmia qualifica a distorção olfativa, quando a pessoa sente um odor que não está presente. O perfume de flores que eu sentia, por exemplo.
Esse quadro requer atenção, implicando em questões de segurança. Quase sempre subestimamos a importância das informações olfativas com que lidamos correntemente.
Agora preciso aprender a me relacionar com um mundo do qual
não consigo perceber os odores, embora seus odores estejam todos por aí,
sinalizando, informando, alertando... Isso apresenta riscos, muitos, com os
quais ainda vou descobrir como lidar.
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