literatices... letras para nada, talvez para tudo... imagens de nada, que podem ser de tudo... matutações... penseros... rabiscações... daquilo que vejo... ou não... porque tomo assento neste tempo quando a humanidade produz vertiginosamente letras, símbolos e imagens, em busca de sentidos, quaisquer que sejam... ou não...
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Tempo livre, excesso de trabalho, desemprego: equação complicada
Foi no comecinho dos anos 1980. Eu tinha ainda 17 anos,
quando estudei o livro Ciência e existência, do filósofo brasileiro Álvaro
Vieira Pinto. No primeiro semestre do meu curso de graduação, o livro integrava
a bibliografia da disciplina Metodologia Científica. Lançado em 1969, em primeira edição,
nesse livro o autor defendia o desenvolvimento científico e tecnológico como
condição para que o país superasse o atraso dominante. Sobretudo,
considerando-se o cenário político desolado pela ditadura militar.
Dentre as várias linhas de pensamento ali desenvolvidas,
estava a ideia de que, com o desenvolvimento científico e tecnológico, os
trabalhadores teriam mais tempo para o lazer. Aquilo me parecia falseado, ou
ingênuo, pois o avanço tecnológico reduziria vagas de emprego no mercado de
trabalho, e o que o filósofo chamava de “mais tempo para o lazer” seria
sinônimo inevitável de desemprego. Talvez o excedente de tempo livre pudesse
vir a ser gozado apenas pelos proprietários dos recursos tecnológicos.
Esse argumento foi recorrente entre filósofos e cientistas
sociais entusiastas dos avanços tecnológicos e suas vantagens à época. Mas sempre
me pareceu uma falácia: a liberação da força de trabalho humana pela entrada
dos equipamentos resultaria em desemprego, não em “mais tempo livre para o lazer”.
Mas, ainda na década de 80, eu não poderia imaginar o outro
efeito perverso dessa delegação de funções aos aparatos tecnológicos: o aumento
de demandas em função de um suposto aumento do tempo livre. Ou seja, se
atividades que antes demandavam um tempo maior para serem executadas agora
podem ser concluídas mais facilmente e com menos tempo, então podem ser
delegadas mais tarefas para que as executemos, com a mesma facilidade e
rapidez. Acumulam-se responsabilidades, e ocupam muito mais do que o tempo
supostamente liberado pelos equipamentos. Gradativamente, essas demandas ocupam
todos os momentos do dia, travestindo-se, muitas vezes, de lazer.
A velha máxima “carregar pedra enquanto descansa” ganhou sentido
renovado. Já que você vai executar esta
tarefa em menos tempo, também pode executar aquela outra! Já que você pode
executar esta tarefa remotamente, inclusive instalado no conforto de sua casa,
então não precisa observar horário comercial. Faça no horário que quiser,
inclusive sentado agradavelmente na varanda de sua casa, ou no clube, quem sabe
até acampando! Que maravilha! O trabalho passou a ocupar os lugares e o tempo destinados ao lazer, com a chancela tecnológica, e o decreto dos donos das vagas de trabalho, os que pagam os salários.
As noções de tempo livre, ócio, desemprego, propriedade dos
meios de produção, propriedade dos recursos tecnológicos e da informação, força
de trabalho, força intelectual, aparecem entrelaçadas, inseparáveis, e requerem certo
distanciamento crítico, menos entusiasta com a própria noção de progresso, para serem pensadas.
Álvaro Vieira Pinto foi um intelectual importante no cenário
brasileiro dos anos 70 e 80 do século XX. Pensou sobre os conflitos de classe,
sobre a educação para adultos e seu papel transformador, pensou as condições de vida das
populações operárias. Mas, nesse aspecto, do tempo livre para o lazer a partir
dos avanços científicos e tecnológicos, o filósofo, no final dos anos 1960, foi
tão ingênuo quanto a maior parte da população, e comprou o projeto
desenvolvimentista ao mesmo preço de oferta para todos os consumidores, nos
grandes centros de compra.
sábado, 27 de dezembro de 2014
De memórias e melodias registradas em fitas K7
Quando o computador não funciona, quando o aparelho para tocar CDs e DVDs também estraga, quando a paciência para ouvir música nessas engenhocas portáveis com som de qualidade duvidosa se acaba, eu me lembro da minha coleção de fitas K7, guardada desde o início dos anos 1980, com coletâneas cuidadosamente organizadas, recolhidas de discos de vinil, ou de outras fitas K7.
Cada caixinha de acrílico ganhava uma capa personalizada, como estas duas. A primeira, tem músicas de Egberto Gismont dos anos 1960, num lado, e as primeiras gravações de Margareth Menezes, no outro lado. A segunda fita tem uma coletânea de Pena Branca e Xavantinho ocupando os dois lados.
É digno de nota a qualidade do som registrado. Apesar dos quase 30 anos, as fitas preservam a qualidade magnética, reproduzindo as músicas praticamente como foram gravadas. Apenas algumas breves oscilações nos canais do estéreo.
Um pequeno detalhe: meu toca-fitas tem recursos invejáveis. Roda para a frente e para trás, e me oferece a opção de tocar lados A e B de duas fitas, até o fim. Além disso, localiza os intervalos entre as músicas, se eu quiser avançar alguma que me pareça desinteressante. Além disso, duas canetas bic foram guardadas junto às fitas. Ferramenta indispensável para a tecnologia em questão.
Um viva às músicas de todos os tempos!
Um viva às tecnologias analógicas e digitais, e todas as demais!
Viva a fita K7 e a caneta bic!
Viva 2015!
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Bolhas de sabão
p/ Ruth
Na rodoviária, uma fila interminável para comprar passagens,
três dias antes do Natal. Uma senhora, à minha frente, observa as filhas que
inventam um modo de brincar enquanto o tempo não passa, e a fila não anda... A
mais velha faz bolhas de sabão com um pequeno aparelhinho, provavelmente
comprado numa loja de bugigangas baratas, enquanto a mais nova se diverte
estourando as bolhas recém-sopradas. De modo muito sutil, a velocidade aumenta:
no ritmo da mais velha produzindo as bolhas, e no gesto nervoso da mais nova em
estourá-las, e rir ao fazê-lo. Por vezes, tal a sua afoiteza, ela estoura as
bolhas antes de se despregarem do aparelho, nas mãos da irmã.
Passa o tempo, a brincadeira ganha certo tempero estressante.
A irmã mais velha tenta ludibriar a menor, que não se cansa de estourar as
bolhas. É vitoriosa. A mãe sorri. Sente-se aliviada, por vezes, quando a fila
se move um pouco.
Lembro-me de quando, criança, eu brincava fazendo bolhas de
sabão. Ensaboava as próprias mãos, com um pouco de água, e soprava no vão
deixado pela meia curva de cada uma. Precisava saber dosar a água e o sabão. Conforme
a abertura das mãos, a bola poderia ser maior, ou menor. E me emocionava quando
elas se demoravam passeando sua transparência por longo percurso, até se
esbarrar nalgum galho de árvore, ou tronco, ou folha, e reduzir-se a gotas de
água ensaboada respingadas no chão.
Observo a menor, e penso que habitamos extremos opostos no
exercício das bolhas de sabão. Eu me sentia feliz quando se prolongava sua
existência frágil e delicadamente bela. Ela se realiza destruindo-as. Eu, de
alguma forma, exercia o controle técnico de sua produção: quantidade de água e
sabão nas mãos, o gesto para a produção da espuma, a posição das palmas e
dedos, a pressão do sopro e o gesto de interrupção, para que a bolha se
soltasse, e pudesse flutuar. A ela isso tudo não importa: tem as bolhas
prontas, disponíveis para o mero gesto que resultará no seu estouro. E no estouro da
próxima, e outra, incontáveis vezes...
Não será assim que vivemos, em meio aos rituais de consumo
em que quotidianamente nos encontramos imersos? Não estamos todos, afinal, estourando
bolhas de sabão, na expectativa da próxima, e de outras, quantas forem, não
importando como, onde em que condições tenham sido produzidas?
Viva o espírito do Natal!
sábado, 20 de dezembro de 2014
Cuba e EUA... notas para começo de pensamento
Inicia-se um novo frenesi. Esquerda e
direita manifestam-se com paixão. Uns a favor, outros contra. Eu tento
encontrar algumas pontas, para tecer algum retalho de reflexão. Certa de que as coisas mais importantes se nos escapam, e por isso
mesmo não conseguiremos compreender de fato o que se passa. Muito menos
se movidos por paixão que polarize posições.
Nisso tudo, há uma questão que me
chama a atenção, de modo particular: o hipercapitalismo, ou, como referiu Benjamin, o capitalismo como religião, e a condição
sem saída da sociedade de consumo que ocupa todos os espaços da nossa existência. Compramos itens, diariamente,
não por necessidade pragmática, mas cumprindo rituais. Consumimos conseguir processar, para assegurarmos nosso lugar nas catedrais, nos eventos sociais, nas celebrações. Aos poucos, nos saturamos com informações. Nossas casas entulham de coisas. Os aterros
destinados para o depósito de lixo crescem assustadoramente, ante o descarte de
quantas coisas, para que se abra espaço aos novos itens... porque os rituais precisam continuar!
Enquanto isso, em Cuba, graças ao
embargo econômico imposto pelos EUA, não há itens disponíveis para serem comprados. As prateleiras dos supermercados ficam vazias. Os visitantes estrangeiros levam camisetas, sabonetes, com que presenteiam os ilhéus, como lhes entregassem objetos preciosos trazidos de outra galáxia. De alguma forma são.
Assim, em Cuba, as
coisas precisam ser recicladas e usadas até além do limite de sua durabilidade
e resistência material. Reinventam-se as tecnologias desde o mais precário, para
efetivamente atender as necessidades. Talvez pudéssemos pensar que o povo
cubano, não por escolha, mas por contingência, não se submete à condição de funcionário dos aparelhos, nos termos
propostos por Flusser.
A situação limite vivida pelo povo
cubano explicita uma face a ser considerada, como contraponto ao aprofundamento
da sociedade de consumidores na qual estamos tão imersos que sequer conseguimos
imaginar outros modos de organização da vida.
Não defendo bandeiras. Da mesma forma, sem titubear, não defendo qualquer
ditadura. Nenhuma. Nenhum argumento justifica qualquer modalidade de opressão. Mas também reconheço que é preciso colocar em questão os formatos de democracia que julgamos exercer. É bom
não esquecermos: dentre outras modalidades, vivemos sob a ditadura do mercado, e nos
comportamos como se tivéssemos liberdades de escolha. Até cremos, mesmo,
nisso... afinal, a crença também é elemento fundante do capitalismo como religião...
sábado, 13 de dezembro de 2014
A criação
A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando.
Deus os sonhava enquanto cantava e agitava suas maracas, envolvido em fumaça de tabaco, e se sentia feliz e também estremecido pela dúvida e o mistério.
Os índios makiritare sabem que se Deus sonha com comida, frutifica e dá de comer. Se Deus sonha com a vida, nasce e dá de nascer.
A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia um grande ovo brilhante. Dentro do ovo, eles cantavam e dançavam e faziam um grande alvoroço, porque estavam loucos de vontade de nascer. Sonhavam que no sonho de Deus a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério; e Deus, sonhando, os criava, e cantando dizia:
- Quebro este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverão e morrerão. Mas nascerão novamente. Nascerão e tornarão a morrer e outra vez nascerão. E nunca deixarão de nascer, porque a morte é mentira. (48)
Eduardo Galeano
Trilogia Memória do Fogo
I. Os Nascimentos
domingo, 7 de dezembro de 2014
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