Ah, a língua que falamos, quantos mistérios guarda,
de quantas histórias é entrelaçada, de que modos sistematiza nossos valores e
nosso imaginário!
O modo como uma língua se organiza sistematiza as
formas de pensamento da comunidade que dela faz uso para se comunicar. Mais do
que se comunicar: para sistematizar o pensamento, para organizar aquilo que
conhece, que sabe sobre o mundo, e para estruturar o mundo em que cada qual se
encontra. As relações entre a língua, os modos como se faz uso dela e a
comunidade falante são dinâmicas, em transformações mútuas e contínuas. Uma
mesma língua falada num determinado momento histórico, por uma comunidade, estará
modificada duas décadas depois, assim como também estará sua comunidade.
Pensar numa cultura, numa comunidade ou numa língua
fixadas no tempo, sem modificações, é pensá-las mortas.
Como soe ser com as culturas de um modo geral, as
dinâmicas de transformações se dão nas tensões estabelecidas entre forças que
tendam à conservação do que já está posto e as forças que busquem instaurar o
novo. A instauração do novo, sem resistência, causa tantos danos quanto a
manutenção do já posto sem renovação. Em meio a tais tensões, a vida em
sociedade se institui, em efervescência.
As diferentes línguas propiciam diferentes
percepções e concepções de realidade, que não são passíveis de tradução entre
si. Ou seja, cada língua oferece ferramentas específicas para organizar o
pensamento e a percepção do mundo de modos específicos.
Tendo isso em conta, e considerando a língua
portuguesa falada no Brasil, podemos buscar algumas especificidades e forças
transformadoras observadas nas últimas décadas. Por exemplo, o fato de que o
modo subjuntivo da conjugação verbal vai caindo em desuso na mesma medida em
que avançamos no aprofundamento das tecnologias para a organização das
informações, do pensamento e, mais recentemente, dos textos. O modo subjuntivo
apresenta uma possibilidade em grande medida inacessível para máquinas que
operam na linguagem binária. Por exemplo, entre o que foi e o que não foi, o
subjuntivo apresenta possibilidades, naquilo que poderia ter sido, ou teria
sido, ou seria...
Fico sempre impressionada como não há quem se
levante em defesa do subjuntivo. Não raro, percebo expressões de estranhamento
ante a própria terminologia: de que trata o subjuntivo? Avançamos, afinal, para
um mundo sem as nuances temporais que essa modalidade verbal permite. Quem
sente falta, a propósito?
Curiosamente, se, no tocante aos modos e tempos
verbais, o uso da língua portuguesa no Brasil tende a essa simplificação,
traduzida no desuso do subjuntivo, que resulta na redução às escolhas entre a
afirmação e a negação diretas, por outro lado, ultimamente se tem testemunhado
o debate a respeito da definição de gênero, delimitado na perspectiva binária,
conforme as referências normativas dominantes em nossa sociedade: ele ou ela,
homem ou mulher, macho ou fêmea.
Algumas línguas contemporâneas abrem algumas
brechas para o eventual uso de pronomes neutros, muitos desses, contudo,
destinados à referência de objetos e outras formas substantivas que não
pessoas: it, no inglês, por exemplo. Ao mesmo tempo, ganham força
as discussões sobre as orientações de gênero na sociedade contemporânea
ocidental, abrindo flancos para a manifestação de orientações outras que se
situam fora da clássica orientação homem-mulher, masculino-feminino, atrelada
às formas biológicas de formação.
As pressões e as demandas sociais tomam a frente.
Logo atrás encontram-se as normas sociais, seguida da legislação, que tentam
dar respostas às demandas. A língua vem depois, se reordenando continuamente,
para traduzir em palavras e estruturação frasal esses modos de viver. Nesses processos
todos, forças divergentes de debatem, entre conservar e transformar, entre
manter e mudar.
É nesse contexto que, há algum tempo, começou-se a
questionar, em primeiro lugar, o fato de a língua portuguesa (não só a
portuguesa, mas essa é a minha língua materna, por isso penso a partir dela)
fazer uso do masculino para incluir todos os gêneros, e a palavra homem como
termo universal que inclui homens, mulheres, crianças, velhos e todos quantos
mais. Tal regra persiste, mas tem sido contestada em quase todas as frentes,
restando poucos usuários que insistem em sua manutenção.
Junto aos questionamentos e à constatação da
necessidade de se rever essa questão, começou-se a buscar formas alternativas
de representação dessas demandas nos textos escritos. Assim, houve quem fizesse
uso dos indicativos dos gêneros feminino e masculino para a escrita de
substantivos, adjetivos, pronomes etc., em referências sempre a homens e
mulheres, professores e professoras, pais e mães, meninos e meninas, entre
outros. Apareceram também escritas com frases tais como: Ele/a é bonito/a. Um
pouco além, houve quem utilizasse o sinal @ em lugar da indicação de gênero:
El@ é bonit@. Estas estratégias representam projetos de inclusão, mas com
algumas limitações. As duas primeiras são estritamente binárias do ponto de
vista de gênero. O uso do sinal @, embora pareça mais aberta, é excludente em
outras instâncias, especialmente no tocante às pessoas surdas e cegas, por
apresentar obstáculos à tradução e à compreensão seja na língua de sinais, seja
no braile. Além disso, o uso do @ resolve, parcialmente, a escrita, mas não
resolve a fala. Do mesmo modo, o uso da barra é um problema para a língua
falada.
Como desdobramento dessas tentativas, alguns
segmentos sociais passaram a inserir uma terceira forma de articulação de
gênero na escrita e fala, esta, referente às orientações não binárias. Ao lado
de ela e ele, acrescentou-se a forma elo.
A frase então passou a poder ter as seguintes construções: ela é bonita,
em referência a uma pessoa de orientação feminina; ele é bonito, referindo
uma pessoa de orientação masculina; elo é bonite, que inclui
pessoas de orientação não binária. É importante ressaltar que a forma neutra
não inclui todas as orientações, como seria o caso de @, mas refere-se à
orientação não binária. Ou seja, ao cumprimentar a todes aqui presentes,
não cumprimento todas as pessoas presentes, mas as pessoas de orientação não
binária.
A adoção dessa terceira referência de gênero na
língua não é consensual, e estabelece territórios de disputa entre as mais
diferentes bandeiras.
Pessoalmente, tenho me proposto o exercício de
forçar a ampliação dos recursos já disponíveis pela língua na direção do seu
uso de modo neutro. Por exemplo, em lugar de escrever: Você, leitor,
leitora, leitore deste texto sobre linguagem neutra, escolho
escrever: Você que lê este texto sobre linguagem neutra. Assim,
pretendo manter a interlocução com qualquer substância viva que, de alguma
forma, e a seu modo, se aproxime do texto em pauta. Tal exercício não é
simples, e tem apresentado desafios na estruturação do pensamento, a cada linha
escrita, a cada argumento construído. Por outro lado, apesar do rigor no
tocante à construção de uma perspectiva includente radical, no mais das vezes,
em sua leitura, esse demarcador passa despercebido por quem faça a leitura. Ou
seja, recorrentemente, quem o leia não se dá conta da indistinção não só de
gênero, mas de qualquer outro marcador social, cultural, de gênero, biológico,
enfim.
Nesses termos, entendo que, muitas vezes, o uso da
terceira forma, na definição da orientação não binária, cumpre sobretudo a
função de ressaltar, inevitavelmente, tal necessidade. Trata-se de uma bandeira erguida.
Por isso mesmo, sem abrir mão do exercício
continuado de uso da língua de modo includente radical, quando solicitada, não
me recuso a fazer o uso da linguagem neutra, especialmente naquelas situações
que concorram à defesa de direitos legítimos, da ética, do respeito à
pluralidade, por mais desafiador que isso seja.
Mas continuo exercitando as possibilidades da língua
conforme posta, empurrando seus limites para mais além, traçando outros mapas,
tentando redesenhar horizontes, para, dentro dela, fazer outros usos,
disponível para as possibilidades de transformar os meus modos de pensar, de
ser e de estar no mundo.