domingo, 25 de agosto de 2024

Sobre ser brasilense


A palavra brasileira, ou brasileiro, para definir quem nasce no Brasil, talvez seja a única forma em que a definição da nacionalidade faz uso de um sufixo que indica uma ocupação profissional: ferreiro, sapateiro, coveiro... Indica, também, um recipiente ou depósito: braseiro, bueiro, esterqueiro...

Dentre as palavras para definir outras nacionalidades, em língua portuguesa, encontram-se aquelas formadas com vários sufixos, dentre os quais -aio: uruguaio, paraguaio; -es: português, inglês, francês, escocês; -ano: italiano, norte-americano, indiano, peruano, mexicano, venezuelano, iraniano, sul-africano... Em relação ao Brasil, esse sufixo define campos de conhecimento a partir de centros de estudos em geral estrangeiros: encontram-se aquelas pessoas que se dedicam aos estudos brasilianos em literatura, política, cultura, cinema, etc. O sufixo -ense também figura para a definição de nacionalidade, é o caso de canadense. No Brasil, esse sufixo é usado para definir a naturalidade em relação tanto à unidade federativa ou ao município onde as pessoas tenham nascido: catarinense, paranaense, maranhense, goianiense, brasiliense. 

O sufixo -ense apresenta uma vantagem dentre os demais, por sua natureza inclusiva, ao abrigar femininos, masculinos e todas as demais variações possíveis dos seres nascidos naquele território: país, unidade federativa, distrito, município, vila...

Também no caso do Brasil, a língua portuguesa prevê outras duas palavras, desconhecidas da maior parte das pessoas, para definir nossa nacionalidade: brasiliano e brasilense. 

Isso posto, escolho me assumir brasilense, e não mais brasileira, nem brasiliana. Note-se a ausência da letra i em meio à palavra, o que a diferencia de brasiliense, em referência a alguém que tenha nascido em Brasília.

Cidadã brasilense, habitante do Brasil Central.




terça-feira, 11 de junho de 2024

O professor quer dar aula... mas o que ensina o professor?

 

foto: Jossier Boleão

Naquela terça-feira, pela manhã, o professor iniciou o dia determinado a dar sua aula. Logo cedo dirigiu-se ao prédio de sua faculdade, que não ficava muito longe, mas também não muito perto de sua casa. No dia anterior, tinha enviado mensagem eletrônica aos alunos de sua disciplina, confirmando as atividades do dia. Estava certo de que estariam esperando por ele (a propósito, era um professor movido por muitas certezas!).

Contudo o movimento grevista discente ainda estava em curso. Os estudantes da universidade vinham assumindo posições cada vez mais consistentes e coerentes em suas reivindicações e na crítica feita tanto à gestão institucional quanto ao orçamento destinado às universidades federais. Em suas reivindicações, apontavam desde a falta de papel higiênico nos sanitários, à falta de segurança nos campi, vários problemas em relação ao refeitório, a redução no financiamento de bolsas para permanência de estudantes de renda inferior, até a necessidade de discussão sobre os ajustes do calendário acadêmico considerando as circunstâncias atuais da comunidade universitária.

O movimento grevista estudantil foi reconhecendo sua própria força, ganhando fôlego e visibilidade. Os estudantes aprenderam e ensinaram em sua mobilização. Na manhã daquela terça-feira, o comando de greve do movimento estudantil teria reunião com a reitora, finalmente, para as negociações.

Ao mesmo tempo, a greve dos servidores das áreas administrativa e técnica também tinha continuidade, com poucos avanços na negociação em âmbito federal. Apesar disso, a reitoria escolhera dar prosseguimento às atividades na universidade como se não se ressentisse da ausência desses servidores. Em contrapartida, os estudantes, fortalecidos em suas relações de pertencimento, reforçavam tanto a importância da greve quanto a importância das funções institucionais por eles exercidas.

Mas o professor não abria mão de sua missão: dar aula. A greve dos docentes fora encerrada e ele estava determinado a dar prosseguimento aos conteúdos de sua disciplina. Chegando à faculdade, contudo, encontrou todas as salas fechadas, bloqueadas com cadeiras, painéis, armários e toda sorte de mobiliário. Os alunos o aguardavam, no corredor, temerosos de serem prejudicados com faltas ou avaliações caso não comparecessem. Cioso de seu exercício docente, ele os conclamou para ajudarem a liberar o acesso, desfazendo o bloqueio montado pelo comando de greve do movimento estudantil. Assim, retiraram as cadeiras, o armário, o painel. Ele abriu a sala e todos se acomodaram nas carteiras reorganizadas. O professor começou a aula abordando conteúdos imprescindíveis à formação daqueles estudantes, tinha certeza disso. Sentia-se forte, o professor, fortalecidas suas convicções. Os estudantes aprendiam com ele.

Aprendiam o quê? O que aprendiam, com ele, de modo que não esqueceriam, que passariam a compartilhar, como convicção? Aprendiam o conteúdo desenvolvido durante aquela aula? Provavelmente sim, mas com alguma chance de, pouco tempo depois, dele já terem se esquecido. Por outro lado, não se esqueceriam, porquanto teriam incorporado a aprendizagem, os ensinamentos sobre um posicionamento que minimiza, ou desconsidera, ou mesmo confronta o pertencimento a uma categoria em mobilização política, o pertencimento a um movimento de estudantes que questiona, que levanta sua voz para perguntar sobre as condições políticas e econômicas da educação e seus agentes, e sua comunidade como um todo.

Para aquele professor, a greve não passava de um ruído, uma perturbação momentânea, que logo passaria. Foi isso que seus estudantes aprenderam.

 




sexta-feira, 31 de maio de 2024

Estrelinhas lilases

 




 

Pouco tempo depois que eu cheguei a Goiânia, atuando como docente do ensino superior, ocorreu de uma petrea cruzar meu caminho, assim, num repente.

Eu vinha caminhando desde o auditório da faculdade, em direção à rampa que me levaria às salas de aula, fazendo o percurso pelo jardim interno. Passei por um trecho sem calçada, que tinha um pouco de musgo seco, num tom de verde muito escuro. Naquele dia, o chão estava coberto por pequeninas estrelas lilases. A visão do lilás sobre o musgo verde escuro me tirou da rota. As estrelinhas ocupavam a área em grande número. Delicadas e leves, deixavam-se oscilar com a brisa. Fiquei ali, parada, em êxtase, observando-as. Depois percebi um caule não muito grosso que se retorcia, subindo pela parede de alvenaria. Fui seguindo seu desenho, até chegar ao último piso, de onde se derramava em cachos de flores, de onde elas se lançavam, em breves danças aéreas, até repousar sobre o chão aveludado do musgo verde escuro.

Se a experiência da ordem da aesthesis refere-se ao momento em que algo afeta os sentidos de tal forma que cause uma espécie de suspensão, por certo, ali, não foi outra a experiência que me tomou.

Segui meu percurso, sem tirar os olhos nem das estrelinhas no chão, nem dos cachos aéreos na altura do último piso, nem do caule retorcido elevando-se em aderência à parede de alvenaria.

Demorei um pouco para saber o nome daquela planta, que quase ninguém conhecia. Aliás, poucos lhe haviam dado atenção. Petrea volubilis, assim é chamada no meio científico. Mas é popularmente conhecida como viuvinha, ou flor de São Miguel, dentre outros nomes.

Comecei a imaginar a possibilidade de ter um exemplar dela na varanda do apartamento. Embora soubesse que ela é uma planta de sol pleno, e numa varanda o tempo de contato direto com a luz solar é pequeno, resolvi tentar. Comprada a muda, acomodei-a num vaso que considerei de tamanho razoável. Ela cresceu, e não demorou para me presentear com as estrelinhas. Mais que isso, entre os galhos secos emaranhados, uma rolinha veio fazer seu ninho, há coisa de 4 anos. Desde então, muitos filhotinhos já nasceram ali, ensaiando seus primeiros voos entre as folhas da petrea.

Sem o sol pleno, as flores são ligeiramente mais claras e os cachos não têm tantas flores. Ainda e assim, o chão se cobre das pequenas estrelas e meu coração de alegrias.

Em tempo: quando uma florzinha cai, do caule fica uma gotícula, como uma lágrima. Talvez por isso ela também seja conhecida como viuvinha...





 

 



quinta-feira, 14 de março de 2024

Um livro de anatomia para a moça que faz a faxina. Ou, sobre a desesperança na poesia de Drumond.

  

Ela é jovem, pele negra, e trabalha como faxineira do prédio de 8 andares. Limpa o que os moradores sujam, recolhe o lixo dos apartamentos, molha as plantas do jardim.

Numa dessas idas e vindas, ela, que me descobriu professora, quis conversar um pouco. Falou-me, entre receios, “estou cometendo uma loucura: comecei a fazer o curso de Nutrição”. Aquela cumplicidade dela comigo me encheu de alegrias. Conversamos sobre o curso, sobre suas expectativas. Depois, me coloquei à sua disposição para contribuir no que ela necessitasse.

Dias depois, ela perguntou se por acaso nós teríamos algum livro de anatomia. Ela queria emprestado, para estudar.

Minha área de pesquisa é bem distante da área de nutrição. Então fizemos, eu e meu marido, uma rápida pesquisa de títulos, e encomendei um tratado de anatomia considerado bom mas não tão caro. Demorou umas duas semanas para que ele chegasse.

Ela, à porta de casa, recebeu o livro de muitas páginas. Passou a mão por algumas delas. Depois o abraçou. Ficou ali, abraçada com o livro de anatomia. Os olhos brilhavam. Foi contando sobre o quanto ela gostava de estudar, e de ler. Ela entendeu que o livro era emprestado. Disse-lhe que não, que era dela. Ela perguntou como iria pagar. Respondi que pagaria sendo uma ótima nutricionista. Ela sorriu e me disse que me traria as notas do semestre para eu ver.

No dia seguinte, retomamos a conversa. Ela já tinha lido parte do livro, estava feliz. E reiterou seu gosto pela leitura. “De que tipo de leitura você gosta mais?”, perguntei. Ela pensou... “Não gosto de romance... nem de poesia...” Fiquei surpresa. Ela achou por bem explicar “gosto da Clarice Lispector... e da poesia de Drummond...”. Que eu também gostava, comentei. Ela continuou “do Drummond eu gosto da melancolia...”. Aquela conversa ia me encantando cada vez mais. Então ela corrigiu “não é bem da melancolia... eu gosto é da falta de esperança... também não é isso, é da desesperança de Drummond que eu gosto”. E seus olhos brilhavam, apoiada no rodo, ao lado do balde com água suja.

Contou-me, então, que, depois de ter deixado a escola por alguns anos, voltou a estudar com o filho já adolescente. Terminaram o ensino médio juntos e entraram para a faculdade também ao mesmo tempo. Só que ele faz outro curso. Perguntei se ela já tinha lido Carolina de Jesus, ou Conceição Evaristo. Não tinha lido, mas conhecia, e sabia do teor de suas produções. Tinha interesse nesses escritos também. Mas gostava de livros que falassem sobre ciência, cientistas, e seu sonho foi alçando voo. Se ela gostava de ficção científica, perguntei. Que sim, respondeu, muito! Rimos juntas: "eu também gosto muito!"

Falou ainda um pouco sobre os filmes de que gosta. Citou alguns filmes sobre a vida de mulheres que a inspiram, referindo-se, sobretudo, a algumas mulheres cientistas.

Eu a abracei devagar, querendo voltar a sentir esperança. A esperança cuja falta era o que lhe causava encanto na poesia de Drummond.

 

 



quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Duas pequenas histórias que me dão pistas sobre quem eu provavelmente seja

 



Pássaros feridos

Eu fazia regularmente o trajeto entre Goiânia e Brasília de ônibus. Nas idas e vindas, conheci pessoas, ouvi histórias, passei por dissabores...

Numa das viagens de Brasília para Goiânia, sentei-me ao lado de uma senhorinha bem idosa, que conversou animadamente comigo durante quase todo o percurso. Soube que ela morava sozinha, que as filhas iam diariamente vê-la. Que às vezes não era diariamente, mas estavam sempre por lá. Que gostava de ler. Que quando precisava sair, tinha um taxista que se tornara seu amigo... Quando estávamos quase chegando, ela ficou menos falante. Disse que a filha ou o genro estariam esperando por ela. Mas ao desembarcar, não os encontrou. Então me disse que precisava ir ao sanitário. Era um pouco longe de onde estávamos. Fui conduzindo suas duas malas e tentando ajuda-la na rampa longa que precisávamos descer antes de tomar o corredor ao final do qual estava o sanitário feminino. Ela entrou e eu fiquei, do lado de fora, cuidando da bagagem. O tempo passou. Sua demora já me despertava preocupação. Entrei levando as duas malas dela e minha mochila. Ela se olhava no espelho, tentando arrumar um casaco amarrado à cintura. Perguntou-me se aparecia alguma mancha por trás, em sua calça comprida. Observei com cuidado, não aparecia. Então ela me segredou que não conseguira controlar o intestino, e estava tentando disfarçar o pequeno desastre que acontecera. Estava tudo bem, lhe disse. E voltamos, devagar, para o ponto do desembarque. A filha com o genro ainda se demoraram um pouco para chegar. Nesse ínterim, ela anotou meu telefone. Quando ela, finalmente, encontrou-se entre os seus, nos despedimos. Alguns dias depois, ela me ligou, queria me fazer uma visita. Entre minhas atividades na universidade, aguardei por ela em casa, no meio da tarde de algum dia da semana. Ela chegou pontualmente, trazida pelo amigo taxista, que a aguardou. Veio elegante, sorridente. Estava feliz por me reencontrar. Eu também fiquei feliz por vê-la. Trouxe um pequeno pacote, que me entregou. Era um livro. Pássaros Feridos. Abri. Na primeira página, havia uma dedicatória da filha para ela, em celebração a uma data de aniversário de quase 10 anos atrás. Disse-lhe que eu não poderia receber o livro, pois era um presente que ela recebera da filha. Ela estava determinada: trouxera para mim, não o levaria de volta. A filha não daria pela falta do livro, nem perceberia. Ela tinha gostado muito e tinha certeza de que eu também iria gostar da leitura. Contou-me um pouco sobre o livro, falou-me um pouco sobre sua vida de idosa que vivia sozinha, perguntou um pouco sobre mim, e se foi.

Não me lembro mais do seu nome. Na dedicatória, a filha, que se chama Laura, refere-se a ela apenas como mãe, sem nomeá-la.

 

 

A balconista e o festival de cinema

Naquele ano, integrei o júri de um festival de cinema. Por isso, fui convidada para a abertura oficial do evento. Errei o horário, e cheguei uma hora e meia antes. A porta principal do teatro ainda estava fechada. Fim de tarde. No centro da cidade, era intenso o fluxo de pessoas encerrando suas jornadas de trabalho. Num calçamento à frente do teatro, sentei-me num banco público, fiquei observando o movimento. Logo sentou-se ao meu lado uma moça, alegre, à espera do namorado. Voltariam juntos para casa. Era balconista, contou-me, e estava com as pernas cansadas. Perguntada, contei-lhe que era professora e que aguardava para assistir à abertura de um festival de cinema. Tudo foi motivo de interesse para ela: eu ser professora, as artes, o cinema, o festival, o teatro. Embora trabalhasse ali do lado, nunca tinha entrado naquele teatro. Perguntou muitas coisas. E notou a equipe de reportagem recém chegada, com especial atenção ao repórter, que "era um gato", de acordo com sua avaliação. Rimos muito, abordando tantos assuntos de modo leve e despretensioso. Quando chegou o namorado, nos despedimos. Eu fiquei ali, observando as pessoas que começavam a chegar ao teatro já aberto ao público. Algumas dessas pessoas tinham estudado comigo, nos cursos de graduação ou na pós-graduação, outras trabalhavam comigo. Todas eram portadoras de uma atitude típica de intelectuais e artistas. Caminhavam com cuidado, os gestos eram quase performados. Talvez fossem mesmo. Tinham familiaridade não só com aquele espaço, mas também com os rituais que nele eram realizados. Comecei a sentir falta da balconista. Dei-me conta de que eu estava mais perto dela. Até pensei em me levantar e chegar ao hall do teatro. Se o fizesse, quebraria o encanto, encontraria pessoas, teríamos histórias para contar. Não consegui: fiquei ali, imóvel, sentada no banco de cimento, em meio à tarde que cedia espaço para a noite. Entendi que meu papel mais importante começaria no dia seguinte, nas sessões de projeção dos filmes que me caberia avaliar, ao lado de mais duas pessoas, formando o júri. Mexi-me no banco, quase inquieta. Faltando pouco para começar o ritual de instalação do evento, levantei-me, fui caminhando, devagar, para cada vez mais longe do teatro. Atravessei a avenida movimentada logo à frente. Depois outra rua um pouco menos movimentada, depois outras ruelas. Entrei à esquerda, à direita, outros semáforos, uma praça, uma rotatória, a calçada quebrada, buracos no asfalto, a brisa quase fresca com o início da noite... Cheguei em casa.

No dia seguinte, daríamos início aos trabalhos, normalmente. 

 




domingo, 22 de outubro de 2023

A dor da guerra não cessa de doer.


La noche en la ciudad es oscura, excepto por el brillo de los misiles;

silenciosa, excepto por el sonido del bombardeo;

aterradora, excepto por la promesa tranquilizadora de la oración;

negra, excepto por la luz de los mártires.

Buenas noches.

 


Tradução, para o espanhol, do poema publicado por Heba Abu Nada, poetisa palestina de 32 anos, um dia antes de sua morte, atingida por um míssil disparado por Israel.

Não há guerra pela paz. Nunca houve. Toda guerra atende a interesses outros que não da paz, ou dos cuidados e proteção da população em geral. Essa guerra é orquestrada pelo mercado bélico. O preço são vidas de milhares de crianças, idosos, pessoas doentes, pessoas em suas lutas diárias pela sobrevivência, capazes ainda de fazer poesia, apesar de tudo.

A dor da guerra não cessa de doer.